TEXTO
E DIREÇÃO DE GUILHERME JUNQUEIRA
Por Liandro Lindner
“Eu caí de joelhos diante do amor transtornado
do teu rosto
Estavas alta e imóvel — mas teus seios vieram
sobre mim e me feriram os olhos
E trouxeram sangue ao ar onde a tempestade
agonizava.
Subitamente cresci e me multipliquei ao peso de
tanta carne”
Há quase
70 anos Vinicius de Moraes escreveu “Cadafalso”. Poema curto, 22 linhas, sem
rimas, juntando transtornos de amor regados ao amargo vinho da loucura. O Cadafalso neste século 21 se relê na peça
escrita e dirigida por Guilherme Junqueira, embora os dois textos não tenham
relação direta. Tendo como inspiração inicial o fenômeno astrológico do
“retorno de Saturno”, que acontece na vida das pessoas aos 27 anos e provoca
reviravoltas, a trama conta a história de Marian Castelari (Lara Giordana Lima),
em plena crise astrológica, que quer se livrar de um casamento infeliz e acaba,
a moda do Fausto, se vendendo aos encantos de um Hiago (Raffab Viana) um
fantasma/demônio/cigano, que a deseja há tempos e a recebe como noiva
imediatamente após a viuvez. Com o tempo ela se arrepende, mas aí já é tarde
demais.
No
primeiro ato, com somente com os dois atores no palco, há uma repetição de
gestos, manejo de mãos, olhares, caras e bocas muito parecidos entre os atores,
como se fossem a mesma pessoa num espelho. Este exagero barroco se mescla a
passos de dança e uso do corpo de forma mímica numa mistura arriscada, que ao
final parece bem sucedida. Lara divina em um vestido negro exibe pernas
bem torneadas, sedutoramente usadas entre um passo e outro com elegância e
atitude. Uma mulher forte se anuncia.
O
tempo passa e a filha de Marian cresce em meio ao cenário lúgubre dos
cemitérios, trabalhando como florista aos 16 anos numa rotina típica destes
lugares, até que conhece Satâna uma senhora pálida (vivida com primor pela
experiente Majeca
Angelucci), que a atrai para uma vida nova
convidando-a para viver em sua casa. Luísa Furtado, que vive a filha, é oriunda
de uma das melhores escolas de atores de São Paulo é um destaque em cena. De
uma menina masculinizada e sem graça, seu personagem vai crescendo no decorrer
do tempo se transformando do medo à surpresa, da curiosidade a excitação, do
apático ao atraente. Tudo em uma hora.
A
direção de Guilherme Junqueira, que tem 27 anos e vive seu retorno de Saturno
pessoal, é certeira sendo - certamente- o tipo de diretor que exige dos atores
o máximo que possam dar. A trilha sonora variada (tem desde uma versão sem voz
de Whatever will be, will be até o paulistano Celso Sim, num timbre
muito parecido com Caetano Veloso) completa o clima da história cheio de tempero
surreal. Os personagens bizarros seriam
facilmente encontrados na rua Augusta, há poucos metros do teatro, vivendo
entre bares e copos coisas semelhantes ao que o palco exibe. A estratégia de narrativa,
Mário Bortolotto em timbre rouco e debochado, desloca a visão da cena como algo
além dos que ali representam. Como se assistíssemos algo contado por um
terceiro olhar e, portanto, parcial deixando assim janelas para novas
interpretações. O cenário minimalista indica forte investimento nas atuações,
na maioria bem sucedida.
O
final sugere um “happy end” meio
falso. Mesmo entre colares havaianos, batons vermelhos e sorrisos o clima da
ilusão fugidia parece ser artificial, deixando espaço para interpretação de que
algo mais esta por vir. O poema “ Quilate
Pingente” do próprio Guilherme parece dar uma pista disto: “eu não desistiriaseguiria, solitário
peixe”. Vinte e quatro linhas, curto como o Cadafalso de Vinícius, sintonias
profundas no início da lua nova de leão.