sábado, julho 05, 2008

Me chamaram de selvagem


Levado por uns amigos um chinês, jovem, estudante e curioso do mundo ocidental esteve numa festa em que eu estava. Após apresentações iniciais, estávamos trocando informações um sobre o outro quando, mediado por um terceiro, ele perguntou se eu era gaúcho. O mediador explicou que sim e que eu havia nascido no interior do estado. Com expressão de quem entendeu a explicação ele numa palavra resumiu seu pensamento: “selvagem.” Ou seja, para aquele oriental esta era a palavra que mais se adequava para designar quem, como eu, não nasceu na capital. A limitação do vocabulário em português fez com que chegasse a esta conclusão e eu, na hora, me surpreendi e não gostei de ser chamado de selvagem pelo rapazinho de olhos puxados. Selvagens, eu entendia são os que não têm lei, nem limites, nem seguem regras. São os desprovidos de polidez, de eufemismos e cortesias. Pára os selvagens a etiqueta passa longe, assim como a civilidade e o controle. Cheio de títulos e viajado, com grifes no guarda roupa, conhecedor de bons vinhos, leitor assíduo e admirador de musica clássica eu não poderia ser um selvagem, onde já se viu isto. Uma raiva grande foi crescendo e me deu vontade de virar a mesa que nos separava pegar o baixinho pela gola da camisa e gritar bem perto do rosto dele: “escuta aqui ô china, ta pensando o que pra me chamar de selvagem?”

Mas antes que tomasse uma atitude brutal (mas legítima) fui socorrido pelo bom senso dos amigos que ao redor riam da minha reação e tentavam explicar a limitação de vocabulário na língua de Camões do visitante oriental. Não agredi ninguém, mas no pequeno espaço de tempo entre ser ouvido à palavra e a ter escutado a explicação, meus instintos falaram mais alto e, ali naquele momento, a selvageria primitiva chegou perto de mim. Então percebi que somos muito mais selvagens do que pensamos e que a capa de civilidade que nos envolve tem sua função social e de conveniência. Já pude perceber, em diversas situações, o ser humano no seu estado mais primata de sensação, desejo, luxúria e volúpia esquecendo ali qualquer convenção ou limitação. Também presenciei momentos em que a animalidade tomava conta dos seres humanos levando-os a agressões impensadas liberando a besta fera que vive dentro de cada um. E não raras vezes eu mesmo, tomado pela ira, pela impaciência, pelo cansaço ou pelo orgulho ferido, explodi num gesto impensado soltando todas as feras que eu cuidava enjaulada. Felizmente o jovem chinês não foi alvo de nenhuma destas reações, mas me lembrou que elas existem.

Quando os europeus chegaram à América se cunhou o mito do “bom selvagem”, seres em estado “natural” sujeitos aos vícios e degenerações do homem civilizado. Mais adiante alguns teóricos afirmavam que a natureza humana é intrinsecamente má e que a bondade só existia neste estado primitivo da selvageria. Posteriormente o conceito de civilizado se aliou a idéia de progresso, ou seja, de capitalista burguês. Quem ficava fora das regras deste tipo de vida levava a alcunha de estranho, exótico, selvagem por extensão, reformulando assim o conceito positivo que a palavra tinha em seu início. A vida moderna se encarrega cada vez mais de tirar das pessoas todo o vestígio de selvageria criando uma falsa idéia de que nas mesuras da polidez e nos salamaleques das convenções se esconde a verdadeira urbanidade. Sacudida de toda esta fina camada o homem das cavernas surge forte e imponente mostrando quem manda naquela parte da floresta e o que este disposto a fazer para presevar seu terreno e garantir seus limites.

Este comportamento possessivo, que se revela ameaçador quando seus domínios estão em perigo se revela sempre no comportamento humano. Desde os líderes mundiais que brigam por espaços de terra, ao homem que não deixa sua mulher sair na rua sozinha. A posse é um dos mais destacados sentimentos de selvageria. O “bom selvagem” dos teóricos podia estar livre dos vícios dos brancos, mas carregava dentro de si mesmo o sentimento arraigado de poder em seus domínios e em nome disto se criou guerras e seus iguais eram destruídos ou vendidos como escravos para os mesmos brancos apontados como fonte do mal. As tentativas de vida em estilo socialista onde o todo produzido era aplicado em beneficio da coletividade, só deram certo por curtos espaços de tempo ou em comunidades muito pequenas. Regra geral a disputa e o acúmulo viraram leis e quem tenta fugir deste circulo acaba ficando a margem e recebe, mais uma vez, o rótulo de inculto e grosseiro e, porque não, selvagem.

A China, pátria do meu novo amigo, é conhecida pelo seu alto poderio econômico, militar e tecnológico, mas também pela exploração selvagem da mão de obra, pela morte de animas em extinção, pelo regime duro e fechado que limita a vida dos cidadãos. Ser selvagem na China é difícil, pois o regime reprime manifestações mais impulsivas e entusiasmadas. É difícil explodir, chutar, mandar as regras pro espaço. A selvageria é institucional e a população acaba vitima da “mão invisível do Estado”. Aqui no calor dos trópicos o extrapolar é visto como uma forma saudável de levar a vida, às vezes até estimulado de forma sutil em eventos públicos como carnaval, futebol e outras manifestações. No melhor estilo hipócrita se cobra cometimento por um lado e se estimula a liberalidade por outro, sem que se indique um meio termo para estes dois extremos. Pensar que todos nós somos selvagens a caminho da dilapidação moral é uma forma de buscar entender como funciona a sociedade e de nos entendermos individualmente. Quase precisei ir até a China para entender isto.

5 comentários:

Dennys Silva-Reis disse...

UM BELO TRANBALHO INTERIOR EM PALVRAS NOS É APRESENTADO NESTE SEU TEXTO.... PARABÉNS!
ME LEMBROU MUITO UM FILME QUE ASSISTI NO CINEMA CHAMADO: "ENTRANDO NA MATA SELVAGEM". É UM FILME QUE FALA JUSTAMENTE SOBRE MOLDES DA SOCIEDADE, ONDE UM JOVEM TENTA ROMPÊ-LOS E ACABA, NO FINAL, POR DESCOBIR QUE A FELICIDADE NÃO VIVIDA SOZINHA.... ÀS VEZES, PRECISAMOS DE ALGUÉM PARA APRENDERMOS COISAS SOBRE NÓS MESMOS.

Anônimo disse...

A fábula das DUAS BILHAS adequa-se bem a esse teu texto, Liandro! Realmente este parece ser o estopim para qualquer, digo qualquer desentendimento, que é o de não respeitar as diferenças, gerando preconceito em cima de preconceito... O pior é que está longe de ser apenas no Oriente, a sociedade ocidental também é muuuuuuito cabeçona neste ponto.

Adriano De Lavor disse...

seu selvagem!
hehehehehehe

Anônimo disse...

Oi, querido! Primeiro, minha solidariedade a você. Depois, deixe-me tentar interpretar um pouco essa situação que te incomodou tanto: penso que esse quiproquó linguístico tem a ver com certas nuanças culturais, não apenas linguísticas. Como exatamente o seu amigo lhe apresentou? Do "interior"? Você sabia que isso pode levar ao entendimento de que você, supostamente, seria da selva que os estrangeiros imaginam que seja o interior do Brasil? Em geral, e quem te escreve é alguém que conheceu um pouco da cultura chinesa, que nesse aspecto não difere tanto assim da brasileira, os títulos definem o sujeito. Desse modo, ser apresentado como alguém que trabalha para um órgão governamental será visto de forma bem diferente de que se for apresentado como alguém que veio de um lugar que eles pensam ser uma floresta. Ignorância, óbvio. Mas essas confusões culturais nos levam a duas conclusões: 1)os preconceitos sempre viram merda quando saem da boca; e 2)precisamos divulgar melhor o Brasil lá fora, em geral eles só conhecem o Ronaldinho.
Abraços acochados vindos do frio candango!

Unknown disse...

Você como sempre nos presenteia com seus textos brilhantes...sempre inteligente e muito especial....digo que se não fosse comprometido até namoraria você!!! brincadeirinha heim....eu o admiro por que sei o quanto de valor tem seu carinho por teus amigos!

Beijo

Gui