Resenha
O Mistério do Rio das Rosas Brancas
Amor
entre iguais, relações entre gerações e o mito de São Sebastião
Temas
polêmicos em meio à tentativa do autor de novo enfoque na obra
Liandro Lindner
Jornalista
O quarto romance do escritor paulista Kizzy Ysatis,
deixa de lado o mundo vampiresco, que foi sua marca nos livros anteriores, e
investe no amor entre iguais e nas relações intergeracionais como tema de
trabalho, mas tudo com uma pitada de magia, surrealismo e sincronicidades
junguianas.“O Mistério do Rio das Rosas
Brancas” atualiza o mito de São Sebastião, jovem que havia sido objeto de
amor de um imperador romano, mas acaba por circunstâncias de poder martirizado
com flechas. A figura icônica do santo, seminu, sem pelos e com o olhar entre o
cândido e o resignado, quase sempre efeminado, tem servido de estampa em camisetas,
convites para a festa e objetos ornados com o símbolo do arco-íris, além de
ensaios sensuais que fazem sucesso em galerias e locais de freqüência LGBT.
Além deste elemento “fora do armário” a obra mexe num tema ainda pouco
explorado: a diferença de idade num relacionamento homossexual. Em tempos de
acusações constantes de pedofilia, em patrulhas sobre conteúdos para
adolescentes e, até, propostas de tornar as terapias religiosas de reversão da
orientação sexual como ciência, tratar deste tema é sempre um desafio e um
abelheiro.
A parte inicial resume o mito do santo e do
imperador, recontando seu envolvimento e seu desfecho. Depois a narrativa se
dirige aos dias atuais e começa com à declaração de amor de Ítalo, um garoto de
17 anos ao seu professor Luiz Caetano com 32. A iniciativa do jovem é recebida
com surpresa e medo pelo amargurado mestre que é chamado pela diretora da
escola, Erica, que também é mãe de Ítalo e amiga de infância de Luiz, para uma
cobrança pela resistência do amigo e colega as investidas de Ítalo, relação que
ela apóia. A história então junta elementos ecológicos ao mobilizar o professor
contra a construção de uma usina hidrelétrica que ameaça a pequena cidade de
São Sebastião das Rosas onde ele havia vivido a infância. A segunda metade é
contata em flash back, relatando experiências
pretéritas de Luiz e o desfecho mágico une os pontos da trama com destreza
culminando com um final fantástico.
O bullying no ambiente escolar atual é
tratado com leveza e a violência somente é apresentada como experiência passada
de Luiz, na resistência familiar do interior, diante da orientação do filho mais
novo. Ao contrário a aceitação da homossexualidade tende a parecer como algo
corriqueiro a ponto da mãe professora se tornar defensora de uma possível união
do filho com o colega de oficio. Além disto, o garoto sem experiência se
empodera de forma surpreendente a ponto de conseguir encarar o homem mais velho
e revestido da autoridade da cátedra e declarar seu amor, depois de uma espera
de seis anos. Um mundo um tanto fantasioso e distante da realidade de exclusão
e preconceito que ainda ronda a maioria das escolas do país. A narrativa se
desenvolve fluida e interessante, como é característica do escritor, no entanto
em alguns momentos há um excesso de proximidade em que o autor tenta dialogar
diretamente com o leitor. Expressões como “meu
caro leitor ou leitora” e “e eu, como
autor, digo” tornam a figura do narrador onipresente quebrando um pouco o
ritmo da leitura. Também, entendo, é preciso ter cuidado com o uso de
expressões corriqueiras em guetos como “fazendo
a linha Tarzan”, o que pode diminuir o alcance da obra pela redução de
referências.
A parte inicial e a final do livro se
complementam funcionando como partes diferentes mais sincronizadas de uma mesma
peça. Com bloco preto e branco conjunto, compacto e cuidadosamente dividido com
a mesma massa e tamanho. Olhos atentos perceberão esta sincronicidade bem
escrita, casando histórias aparentemente diferentes num mesmo bloco de narrativas
que se dialogam. Igual técnica o autor já havia utilizado nos romances
anteriores, quando somente no fim da leitura que se entende os pontos e a linha
que os une ao longo da trama.
A possível mudança no público leitor, com a
mudança de enfoque nas produções pode resultar ao escritor como um risco ou uma
possibilidade. O risco reside na não satisfação do leitor já consolidado diante
das novas janelas abertas, preferindo as abordagens anteriores. Neste ponto a
chamada literatura LGBT tem se revelado um terreno pantanoso, pois os ícones
deste tipo de livros se dividem basicamente em levantamentos históricos com
cunho acadêmico ou em narrativas pessoais ou de inspiração folhetinesca. Já as
possibilidades se fundam no amadurecimento do autor que, seguro de seu papel,
se insere em novos nichos levando pontos de vista diferenciados e assim
contribuindo para a criação de uma literatura mais ampla e menos fechada no seu
segmento.
Particularmente não me agrada a rotulação de
autores de acordo com o tipo de narrativas que optam em determinado momento da
carreira. Escritores que foram bem sucedidos em literatura infanto-juvenil já
demonstraram igual capacidade em literatura adulta. Outros que se dedicaram ao
público infantil igualmente foram bem sucedidos em outra área ou a chamada
“literatura para mulheres” passou por um encolhimento, principalmente diante do
novo papel da mulher na sociedade. No entanto, os autores que se dedicam a
temática homossexual correm o risco maior de ficarem estigmatizados no seu trabalho
em função do preconceito que ainda circula ao redor deste tema tanto junto ao
público leitor e aos formadores de opinião. Por outro lado, a necessidade de
explorar criativamente o tema pode levar a novos prismas e, portanto, a novas
oportunidades literárias.
O novo livro de Kizzy Ysatis pode não reviver
as deliciosas narrativas históricas do período imperial que misturam realidade
e ficção e as boas sacanas do mundo dos vampiros, semelhante a um jogo de
xadrez literário, mas traz possibilidades de reflexão sobre temas candentes
como vida, morte, sexualidade, gerações e misticismos. O trabalho surge como um
ganho para este tipo de leitura ainda tão cheio de hormônios e tão carente de
neurônios. A contribuição trazida exalta o amor acima das sensações, algo raro
em qualquer meio que discute relações e tem o crédito de demonstrar a confiança
do autor em cada linha que escreveu, não apenas por senso de oportunidade, mas
principalmente por acreditar. Um debate aberto navega neste rio às vezes mais
espinhoso do que repleto de rosas.
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