Antigamente as cidades reservavam para os cemitérios locais distantes. Longe da zona urbana, do comércio, das escolas e da área de diversão. Quando muito eram destinados ao lado de Igrejas, mas sem vizinhos. Os espaços dedicados ao culto dos mortos ficavam afastados da vista cotidiana, tendo os dias certos para serem visitados. Nos demais dias se esquecia praticamente de sua existência, como se esquecia que esta será, com algumas variações, o destino de todos nós. Mas o progresso traz suas vantagens e também nos joga na cara pensamentos que evitamos. As cidades cresceram e não raro encontro cidades que convivem com cemitérios dentro de bairros populosos, vizinho de prédios altos, de corredores de ônibus, caminho de um passeio, das idas ao trabalho e de retorno da escola. Quando se abre a janela para o sol do novo dia entrar, se depara com as filas de sepulturas e jazidos, quando se retorna de uma balada, já tarde da noite, o muro alto se mostra impávido.
Lembro de minha mãe fazendo o sinal da cruz sempre que cruzávamos pelo “campo santo”, sinal de respeito e de piedade. Na época de finados, havia toda uma preparação limpando as lápides, colocando flores novas, pintando tumbas desgastadas pelo tempo. O dia de finados era quase uma festa reunindo amigos de longa data, parentes distantes que se reencontravam celebrando a vida num dia dedicado a morte. A cena inicial do filme “Volver”, de Pedro Almodóvar, me levou direto a esta lembrança de minha infância: dezenas de mulheres agrupadas ao redor de restos mortais zelando com cuidado pela ultima morada do ente querido. O cuidado dos mortos era uma atividade feminina, aos homens se reservada os serviços mais duros como empilhar tijolos, fechar com argamassa, colocar pesadas lajes selando definitivamente a passagem daquela pessoa sobre a terra.
Hoje se vivem dois movimentos. Primeiro a negação da finitude humana e a fuga constante desta realidade. Chega a ser interessante ver a reação das pessoas que convivem próximos a estes lugares, evitando o olhar – e por conseqüência o pensar-quando inevitavelmente se deparam com o espaço. Mas, aos vizinhos, silenciosamente ele se impõe pelo movimento constante dos sepultamentos, pelo cheiro das flores, pelo desenho das alamedas visto do alto. O segundo movimento é banalização da vida e da morte nos dias atuais. Se viver se torna uma coisa fútil, a morte vira mais uma etapa desta futilidade. Sinais destes tempos são as constantes noticia de uso do espaço de cemitérios para coisas menos ortodoxas como uso de drogas, namoros ou sexo, que fez por outra habitam as páginas dos periódicos e as mentes mais imaginativas.
A morte não é apenas o processo natural da vida, é também o coroamento de uma trilha, o recebimento de um prêmio pelo caminho cumprido, o culminar de um processo. Mas falar de morte é cada vez mais um tabu, ela se limita a atentados distantes, catástrofes em outros continentes ou noticias que os telejornais despejam e que cada vez nos chega mais perto e nos deixa mais aflitos. Conviver ao lado de um cemitério não deve ser um catalizador de superstições e crendices, mas um aviso constante que a vida acaba e que bem vivê-la é uma urgência. Deveríamos ter muito mais medo das nossas assombrações interiores, dos perigos imaginários, das limitações que criamos, dos muros que erguemos nos separando dos outros, de não ter amado o suficiente ou não ter sido feliz o bastante.
Os nossos fantasmas interiores que deveriam nos assustar e congelar e não aqueles que descansam no fundo de seus túmulos. É contemplando a certeza da morte que devemos ter mais força para apreciar a beleza da vida. Toda a vez que passarmos na frente de um cemitério vamos lembrar disto, e que os vizinhos deste campo cultivem firmemente a política da boa vizinhança.
8 comentários:
A parte que gostei e diz tudo"A morte não é apenas o processo natural da vida, é também o coroamento de uma trilha, o recebimento de um prêmio pelo caminho cumprido" abraço
Acho que todos sabem que a única certeza nessa vida é a morte, mas mesmo fazendo parte desse Todo, ainda assim, não gosto de pensar nisso, prefiro viver a vida intensamente a ter que pensar nisso.
Abraços
oi achei legal esse topico cara
flw
t+
Caramba, genial brother. nunca tive receio de cemitério não. Ao contrário, acho que passa um sentimento diferente demais doq estamos acostumados. Em SP tem um que já uma obra-prima. Com belas estatuas e pequnos templos que celebram a ida daquele que algumas vez fez alguem feliz. É triste sim, mas ao menos tempo bem bonito. Gostei dessa sua reflexão. Show de bola. Vou te linkar ok!? Não sei pq ainda não fiz isso... abs!
Minha avó me dizia quando pequeno:
"Tema os vivos, meu filho. Os mortos não fazem mal a ninguém."
Salvo algumas exceções, concordo com ela. Respeito os mortos e não os temo!
ÓTIMO gancho esse da "vizinhança" do cemitério.
abraço
Concordo com vc em 100%...
"É contemplando a certeza da morte que devemos ter mais força para apreciar a beleza da vida."
sei lá, hj nem tem receio com cemitérios...não gosto de entrar, mas passo em frente de alguns todos os dias, pq como vc disse, hj, os cemitérios não são mais distantes do centro.
Somos seres que invadem os espaços dos outros, sejam estes tumbas, árvores, animais ou nós próprios.
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